A disputa presidencial entre Viktor Yanukovich e Viktor Yushchenko, que movimenta a Ucrânia, tem significados mais profundos do que uma primeira leitura dos fatos pode levar a entender. Por trás das articulações, movimentos e manifestações existe um jogo de geopolítica internacional, disputas e vinganças internas, além do embate entre duas Ucrânias históricas, separadas pelo rio Dnieper. Com importância estratégica, tanto geográfica e histórica, quanto política e econômica, a situação atual merece uma análise embasada principalmente nos fatores que movem os personagens da crise instalada, e até o momento controlada institucionalmente, no país.
É preciso entender o momento ímpar que vive a Ucrânia, um país que passou grande parte de sua história sob o domínio de outras nações. Nascida na região do antigo Reino da Rússia, foi formada pela chegada de bizantinos, eslavos e escandinavos. Conheceu o cristianismo (predominante até os dias atuais) no século X e caiu sob o domínio lituano e polonês após a invasão mongol da antiga Rússia. O rio Dnieper, no século XV, foi responsável pela linha divisória do país – o oeste permaneceu sob dominação polonesa, enquanto o leste sob o jugo da Rússia, que após a partilha da Polônia, no século XVIII, estendeu seu domínio por sobre todo o território ucraniano. Após tentativa de independência durante a Revolução Comunista Russa em 1917, foi partilhada mais uma vez, mediante o Tratado de Riga, em 1921, deixando as margens ocidentais do Dnieper sob o domínio tcheco, romeno e, mais uma vez, polonês. O lado oriental permaneceu sob o domínio de Moscou. A independência de todo o território ocorre somente com a queda do comunismo e desmembramento da antiga URSS, em 1991, quando o Parlamento declara a independência, em 24 de agosto.
A posição estratégica da Ucrânia, que abrigou o desastre nuclear soviético em Chernobyl, encontra-se além das suas grandes reservas de manganês, carvão e ferro. Mais do que para qualquer país, possui importância seminal para a Rússia. Toda a infraestrutura que liga Rússia a Europa passa pela Ucrânia, especialmente os dutos de transmissão de gás natural, além disto, o porto de Sebastopol, na Criméia (sul da Ucrânia), é a única saída de águas profundas para o Mar Negro do antigo império soviético. Ainda é importante lembrar que o rio Dnieper é a única rota de transporte marítimo que parte da Bielo-Rússia (Belarus) – forte aliada de Moscou e que possui ¼ da população ainda sofrendo as consequências da irresponsabilidade soviética em Chernobyl. Por fim, a Ucrânia, que foi o maior centro industrial da antiga URSS, tem importantes fronteiras com os países da parte norte do Cáucaso, que possuem fortes tendências separatistas e desafiam Moscou. Portanto, os interesses de Putin, além de políticos, passam fortemente pelo lado econômico. Para o Kremlin é imprescindível possuir um aliado no governo de Kiev. Putin apóia abertamente o atual primeiro-ministro, Viktor Yanukovich, vencedor das eleições consideradas fraudadas pela Suprema Corte, Parlamento e observadores internacionais.
Do outro lado situa-se Viktor Yushchenko, antigo primeiro-ministro, derrubado pelo Parlamento em 2001, quando o atual presidente Leonid Kuchma escapou de um impeachment por apenas 15 votos. Yushchenko, envenenado supostamente pelo Kremlin, apresenta-se como candidato pró-ocidente, que desperta mais do que desconfiança em Moscou. Ele é apoiado por Yulia Tymoshenko, antiga vice-primeira ministra, que representa os interesses do setor de gás em contraposição aos interesses do petróleo, defendidos pela Rússia e por Yanukovich. Percebe-se que aquilo que está em jogo é muito maior do que se pode imaginar, especialmente quando sabe-se que Yulia deixou o cargo sob a acusação de participar de um esquema de contrabando de gás.
Este é um jogo difícil para Putin e delicado para a comunidade internacional, uma vez que tem sabores de uma Guerra Fria que se imaginava terminada há treze anos. Moscou teme perder a influência na Ucrânia e sepultar, desta forma, um importante aliado para o ressurgimento do império russo, sob o domínio do czar Putin. Uzbequistão, Tajiquistão e Quirguistão já estão alinhados com Washington. A Ucrânia seria uma perda de proporções incalculáveis para o Kremlin. Putin, contudo, ainda tem cartas na manga, que mesmo com a vitória de Yanukovich, não deixará de fazer uso. E neste tabuleiro entra Washington e sua influência na Ásia Central. Entretanto, a maturidade institucional que a Ucrânia tem apresentado, é até agora, aquilo de mais admirável de uma nação que dá seus primeiros passos dentro uma liberdade democrática.
* Márcio Chalegre Coimbra, é advogado, sócio da Governale - Políticas Públicas e Relações Institucionais (www.governale.com.br). Habilitado em Direito Mercantil pela Unisinos. Professor de Direito Constitucional e Internacional do UniCEUB – Centro Universitário de Brasília. PIL pela Harvard Law School. MBA em Direito Econômico pela Fundação Getúlio Vargas. Especialista em Direito Internacional pela UFRGS. PhD em Direito Internacional pela Universidade de Winsconsin. Conselheiro do Instituto Liberdade. Vice-Presidente do Conil-Conselho Nacional dos Institutos Liberais pelo Distrito Federal. Sócio do IEE - Instituto de Estudos Empresariais. É editor do site Parlata (www.parlata.com.br) e articulista semanal dos sites www.diegocasagrande.com.br e www.direito.com.br. Possui artigos e entrevistas publicadas em diversos sites nacionais e estrangeiros (www.urgente24.tv e www.hacer.org) e jornais brasileiros como Jornal do Brasil, Gazeta Mercantil, Zero Hora, Jornal de Brasília, Correio Braziliense, O Estado do Maranhão, Diário Catarinense, Gazeta do Paraná, O Tempo (MG), Hoje em Dia, Jornal do Tocantins, Correio da Paraíba e A Gazeta do Acre. É autor do livro “A Recuperação da Empresa: Regimes Jurídicos brasileiro e norte-americano”, Ed. Síntese - IOB Thomson (www.sintese.com).