
Serpro deu a notícia no evento do Google Cloud. Foto: Divulgação Google/Luis Franca.
O Serpro, maior estatal de tecnologia do país, deve estrear sua “nuvem soberana” antes do final do ano, usando para isso tecnologia do Google Cloud, uma dos maiores players multinacionais de cloud computing.
O anúncio, que à primeira vista pode parecer meio contraditório, foi feito por Ariadne Fonseca, diretora de Negócios Econômicos Fazendários do Serpro, durante um grande evento do Google Cloud em São Paulo nesta quarta-feira, 2.
Chave para entender o movimento é o fato de que as tecnologias do Google (o “stack de nuvem”, para usar um termo técnico) funcionam dentro do data center do Serpro em Brasília, administrados pela estatal.
Dentro do Google Cloud, essa abordagem é conhecida como Google Distributed Cloud (GDC). A solução foi lançada ano passado e atualmente está em desenvolvimento apenas em projetos dos governos do Brasil e de El Salvador, afirma o Google.
Segundo o Google Cloud, o Serpro terá uma nuvem com as mesmas características de um “hyperscaler”, como são conhecidas as empresas donas de data centers de alta performance como o próprio Google, AWS e Azure.
A nuvem do Serpro turbinada pelo Google Cloud deve começar a operar em outubro ou novembro, disse Fonseca.
A próxima etapa do projeto com o Serpro será o treinamento de 2 mil desenvolvedores em gestão e gerenciamento da nuvem, o que posteriormente poderá ajudar na criação de aplicações para a população em todas as esferas do governo: federal, municipal e estadual.
REVIRAVOLTA
A história dos projetos de computação em nuvem no Serpro é cheia de reviravoltas, e a parceria com o Google Cloud é uma pirueta especialmente chamativa dessa trajetória.
Em abril deste ano, o Serpro divulgou o projeto da “Nuvem de Governo”, uma solução, que, de acordo com a estatal, transforma o Brasil “na única nação com nuvem 100% soberana no hemisfério Sul”.
A nota divulgada pelo Serpro adiciona ainda que os dados serão mantidos “integralmente dentro das fronteiras do país”, nos data centers da estatal, o que elimina “riscos associados à transferência internacional de dados” e assegura “total conformidade com as regulamentações nacionais”.
A “Nuvem de Governo” representava uma ruptura com a estratégia do Serpro durante o governo de Jair Bolsonaro.
A partir de 2019, o Serpro começou a fechar acordos em série com as gigantes de nuvem, nos quais se posicionava como uma intermediária na venda de nuvem para órgãos de governo.
A AWS foi a primeira a entrar, com um contrato de R$ 71,2 milhões ainda em 2019. Depois vieram Huawei (R$ 23 milhões), Microsoft (R$ 22,6 milhões), Oracle (R$ 41,5 milhões) e IBM (R$ 40,3 milhões).
As condições eram sempre as mesmas: contratos de cinco anos, nos quais os valores fechados são apenas uma base, cuja concretização dependeria de quanto o Serpro fosse efetivamente vender no final.
Não se sabe efetivamente quantos contratos foram fechados por essa modalidade. Ainda no apagar das luzes do governo Bolsonaro, veio a público que o Ministério da Saúde fechou um contrato de R$ 32 milhões com o Serpro atuando como “broker”.
Curiosamente, a única grande empresa de computação em nuvem a não embarcar nos acordos com o Serpro foi justamente o Google Cloud, que agora vira o fornecedor da nova “Nuvem de Governo”.
Ainda não vieram à tona informações sobre quanto isso custa, em que condições o Serpro está comprando essa tecnologia do Google Cloud. Outros grandes players, como AWS e Microsoft, com certeza se diriam capazes de entregar uma solução similar.
AWS, Microsoft e Google Cloud, aliás, têm data centers no Brasil há quase uma década, e sempre juraram de pés juntos que podem garantir que os dados do governo ficam hospedados apenas no Brasil.
A desconfiança de governos (não só do brasileiro, por sinal) de que as grandes empresas não podem garantir totalmente que os dados na nuvem jamais deixarão o país de alguma forma (caindo na jurisdição americana) é a força motriz pela busca da tal “soberania de dados”.
Trocando em miúdos, isso significa que um governo está 100% seguro de onde estão seus dados o tempo todo, uma proposição que, levada até o fim, significaria que o governo precisaria construir e administrar seu data center com tecnologia open source.
(Essa é provavelmente uma discussão técnica sem fim, mas se você quer achar pelo em ovo em hospedar seus dados num data center do Google Cloud, também deve poder achar algum no tal Google Distributed Cloud).
O conceito de que o governo não deveria depender de software proprietário em nenhuma medida, e muito menos de multinacionais malvadas, era popular entre os teóricos de tecnologia da esquerda brasileira entre o final dos anos 90 e o começo dos 2000 (alguém lembra do falecido Fórum de Software Livre?).
Colocar algo assim em prática no governo em 2024, no entanto, significaria muito mais do que trocar umas quantas licenças de Windows pela distribuição Linux XYZ. Data centers de alto desempenho custam bilhões de reais. Pelo que parece, alguém em Brasília fez as contas e decidiu por um meio termo.