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Foto: Pexels.
É fácil colocar dinheiro na 99Pay, carteira digital da 99, difícil mesmo é tirar ele de lá. A lição foi aprendida pela jornalista Luana Rosales, que vem enfrentando situações paradoxais nos últimos meses ao lidar com os critérios e o atendimento da fintech.
As aventuras de Rosales começaram em 25 de outubro de 2021, quando ela transferiu R$ 1.245,78 para a carteira digital, por conta do rendimento oferecido, de 220% do CDI, o maior entre as contas digitais naquele momento e três vezes o rendimento da poupança.
Além do rendimento, a carteira digital lançada em setembro de 2020 pela 99 oferece facilidades de pagamento das corridas feitas por meio do aplicativo. Em agosto do ano passado, a carteira estava disponível em 54 cidades.
Colocar o dinheiro na conta (o que os entendidos chamam de “onboarding digital”) foi muito fácil: não foi solicitado nenhum dado, documento, ou verificação de identidade para que o dinheiro entrasse na carteira digital. Um Pix foi o necessário.
Logo em seguida, porém, a conta foi bloqueada com a justificativa de que a identidade precisava ser verificada.
Foi o momento no qual Rosales começou a viver dentro de um mundo labiríntico, regido por regras opacas aplicadas por seres indiferentes (a versão de Franz Kafka para o que os especialistas chamam de “experiência de usuário”).
Para a verificação da identidade, o sistema da 99Pay só aceita a Carteira Nacional de Habilitação (CNH), que Luana não possui, e carteira de identidade, que estava muito antiga (a primeira via foi feita com 11 anos e a segunda, perdida em outro país em 2015).
Outros documentos oficiais do governo brasileiro, como a carteira de trabalho ou o passaporte, de alguma maneira não atendem os requisitos obscuros do sistema da 99Pay.
Após diversas tentativas de verificação pelo app, sem sucesso, Rosales ligou para a central de atendimento da empresa no dia 29 de outubro, adentrando assim no seguinte nível do que Dante Alighieri chamaria de “círculos do inferno” e os entendidos chamam “customer success".
A orientação do atendente Rafael foi que o ideal era fazer uma identidade nova para o aplicativo aceitar. De qualquer forma, Rafael abriu um chamado.
Uma semana depois, a equipe enviou um e-mail com a seguinte mensagem: “Nos envie por gentileza, os seguintes dados: foto do documento frente e verso (CNH ou RG); selfie com o documento”.
O leitor atento do Baguete não poderá deixar de notar que a resposta ignora totalmente os problemas já expostos por Rosales anteriormente, sendo provavelmente produto de uma sofisticada solução de inteligência artificial. A aplicação do máximo de tecnologia, resultando no mínimo de compreensão. Um belo paradoxo.
Rosales, uma colega apreciada no Baguete pela sua simpatia, repetiu os problemas na sua resposta:
“Olá, Déborah! Esse é exatamente o problema que bloqueou minha conta. Não tenho CNH e minha identidade está muito antiga, então estou enviando a carteira de trabalho. Para colocar o dinheiro, não me foi solicitado documento algum e agora não consigo movimentar o valor que coloquei na conta”, respondeu Luana.
A explicação sintética e educada da jovem jornalista foi respondida novamente por outra mensagem automática (paradoxos, etc).
Dessa vez, numa prova do cosmopolitismo inerente a corporações multinacionais como a 99, ela veio em espanhol, assinada pela DiDi Panamá, e informava apenas que o canal de e-mail havia sido desabilitado (a 99 foi comprada pela chinesa Didi Chuxing em 2018, então Rosales pode estar contente de não ter recebido uma resposta em chinês).
A orientação era utilizar o menu “ajuda” do aplicativo. Como esperado, Déborah nunca respondeu.
Com isso, Rosales decidiu seguir o conselho de Rafael, deixou o seu bom senso de lado e decidiu curvar-se às vontades da 99. Era hora de fazer uma nova carteira de identidade.
Após inúmeras tentativas em municípios diferentes, marcou um horário em Porto Alegre, sua cidade vizinha, utilizando parte do precioso recesso de final de ano do Baguete.
Foi aí que Rosales se deparou com outro mundo labiríntico, regido por regras paradoxais aplicadas por seres indiferentes — a burocracia brasileira.
No Tudo Fácil, órgão de nome deliciosamente irônico encarregado pelo governo gaúcho de emitir documentos e realizar outras tarefas de maneira simplificada, Rosales ouviu que era impossível fazer um novo RG.
A justificativa é que a certidão de nascimento original de Rosales, nascida nos anos 90, estava datilografada.
Como o órgão que emite o RG também não possuía os dados já fornecidos na confecção dos documentos anteriores, foi preciso buscar uma segunda via da certidão de nascimento.
O registro de nascimento de Luana é de outra cidade, então foi preciso ir até lá, em outro dia, para emitir o documento.
Se o processo fosse realizado em um cartório de Porto Alegre, custaria o dobro do preço (uma taxa de R$ 41,27 para cada cartório) e demoraria mais.
Com a nova certidão em mãos, foi preciso marcar uma nova data para finalmente fazer a nova via da identidade, que custou R$ 96,34, sem falar nos valores gastos com transporte e o recurso de tempo para todas essas idas e vindas.
Claro que a 99 não tem culpa do modus operandi absurdo de um sistema cartorial. Por outro lado, o seu próprio modus operandi absurdo, ao não aceitar um outro documento oficial, gera a necessidade de lidar com os cartórios, gerando uma espécie de diálogo entre as duas indiferenças, em prol de causar mais transtornos na vida de Rosales.
De todas formas, Rosales obteve um novo RG. O que, lamentavelmente, não fez diferença nenhuma, uma vez que todas as tentativas posteriores de provar a sua identidade para a 99 terminaram em erro.
Depois de um período de intenso auto questionamento sobre a própria identidade, Rosales se convenceu de que seguia sendo ela mesma e decidiu abrir uma queixa no Reclame Aqui, onde foi relatada a situação já em 22 de janeiro de 2022.
A resposta da empresa veio em menos de duas horas, pedindo número de telefone atual do usuário, CPF do titular da conta, print do erro no aplicativo, modelo do aparelho celular, sistema operacional e versão do aplicativo.
Após o envio das novas informações, foi solicitado que aguardasse novo contato por e-mail, pois o caso estava “em análise”. No dia 26, chegou uma nova mensagem.
“Realizamos análises em diversos fatores relacionados ao seu cadastro e sua utilização dos nossos serviços e optamos pelo bloqueio temporário da sua conta 99Pay. Uma área especializada está fazendo uma análise detalhada e o prazo para conclusão dessa análise é de 7 dias úteis”, enviou a empresa.
Dois dias depois, a 99 solicitou comprovantes de renda e de residência. Rosales se indagou porque a 99 deveria saber a sua renda e se isso talvez não configure uma infração em relação a leis de proteção de dados, mas enviou as informações assim mesmo.
Uma residente involuntária, mas de certa forma já adaptada aos processos circulares e às instâncias isoladas dos processos da 99 (o que os especialistas chamam de gestão de relacionamento com o cliente), Rosales enviou toda a documentação no dia 1 de fevereiro.
Até agora, nenhum retorno por parte da companhia. Desde o começo dessa história, já se passaram três meses. Além de não poderem ser utilizados, os R$ 1.245,78 também não renderam nenhum centavo.
Para Luana Rosales, o mais intrigante de toda história é o pouco que os procedimentos parecem ter, na prática, a ver com prevenção de fraudes, que seria a justificativa de um processo de checagem de identidade cauteloso.
Afinal, tudo o que a 99Pay teria que fazer, se considerasse os R$ 1.245,78 de origem suspeita, seria devolver o dinheiro para a conta de onde eles vieram. Fazer um Pix, como Rosales fez.
Certo?
FALA A 99PAY
Nesta quinta-feira, 17, a 99Pay entrou em contato com o Baguete para informar que a conta de Luana Rosales foi desbloqueada, após a avaliação da documentação.
A nota da empresa não chega a mencionar o motivo da prática de aceitar o dinheiro primeiro e checar os dados depois, porque alguns documentos oficiais são aceitos ou não ou ainda porque o dinheiro não é simplesmente reembolsado para a conta de origem em caso de suspeita de fraude.
Confira o texto na íntegra:
A 99Pay, carteira digital da 99, esclarece que após avaliação da documentação fornecida pela usuária, providenciou o desbloqueio da conta. A medida de bloqueio é feita pelos algoritmos da carteira digital em um procedimento padrão para manter a segurança das transações realizadas, a privacidade e proteger contra tentativas de fraude. A 99Pay, criada para democratizar o acesso à economia digital, possui uma equipe de inovação e tecnologia que trabalha 24 horas, sete dias por semana para manter a confiabilidade, o sigilo e a segurança dos usuários.