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“Levantar-se, bonde, quatro horas de escritório ou fábrica, refeição, bonde, quatro horas de trabalho, refeição, sono, e segunda, terça, quarta, quinta, sexta e sábado no mesmo ritmo, essa estrada se sucede facilmente a maior parte do tempo. Um dia apenas o “porquê” desponta e tudo começa com esse cansaço tingido de espanto”. Com essas palavras, o escritor franco-argelino Albert Camus aborda, em sua obra “O mito de Sísifo”, a relação do homem com o seu cotidiano. Particularmente, o que interessa a Camus é esse despertar, o momento do “porquê”; é então que o homem deixa de apenas viver para questionar a razão daquilo que envolve a sua vida.
É verdade que Camus pretende investigar a existência humana de modo muito mais amplo; todavia, o mesmo princípio observa-se no cotidiano da vida humana, em atos tão banais e corriqueiros quanto digitar “@” diante de um computador ou em um smartphone. O mesmo ato é repetido inúmeras vezes, por diversas pessoas, há muito tempo. Entretanto, quase nunca alguém interrompe o hábito com o momento do “porquê”, buscando compreender a razão de uso deste “a com uma voltinha”. Ele é chamado por italianos de “caracol”, por holandeses e alemães de “cauda de macaco”, e, em outros países, de “tromba de elefante” ou “pretzel”.
A justificativa para o uso do símbolo é curiosa, remetendo ao latim. Ocorre que, nesse idioma, uma importante preposição é “ad”, cuja função é indicar a direção, aproximação ou finalidade. Aparentemente, foi na Idade Média Tardia que o símbolo nasceu, exatamente como uma abreviação de “ad” em manuscritos latinos. Durante a Renascença, comerciantes passaram a usar o símbolo derivado do “ad” latino para indicar o preço por unidade — por exemplo, “1 barril @ 50 ducados”.
Como certos produtos eram armazenados em ânforas, o uso comercial do símbolo se difundiu, e a unidade de medida passou a ser chamada de “arroba” nas línguas ibéricas. O símbolo, já usado para indicar “por unidade”, foi associado à palavra “arroba” – derivada do árabe, onde representava “a quarta parte” –, que designava uma unidade de peso usada em Portugal e na Espanha.
Mas foi na era digital que o símbolo encontrou sua maior fama. Ray Tomlinson, engenheiro da BBN Technologies, empresa contratada pela ARPA (Advanced Research Projects Agency, do governo dos EUA), buscava um caractere que indicasse a relação entre usuário e servidor. Foi por isso que os sistemas de e-mail incorporaram o mesmo padrão com o símbolo @: usuário@seuprovedor.com remete, assim, às raízes latinas traduzidas pela preposição inglesa at, isto é, “usuário neste provedor”.
Atualmente, o símbolo possui dois usos tão específicos quanto sintomáticos. Primeiro, a expansão de websites para empresas levou seus empregados a uma identificação de relação facilmente visualizada nos e-mails. Mas, para além deste, o símbolo é usado hoje para identificar usuários dentro de uma rede social. A mesma ideia está preservada, mas em um novo conceito: o usuário, ao passar da esquerda para a direita do símbolo @, já não é representado como pertencente a um provedor ou a uma empresa; ele próprio assume o protagonismo dessa representação.
É claro que conhecer uma história como essa pode ser apenas um repertório para esbanjar conhecimentos gerais para algumas pessoas. Mas pode representar algo bem mais significativo, como aquele momento descrito por Camus, como o despertar do “porquê” – tão comum nas crianças que começam a conhecer e explorar o mundo. Investigar a razão de ser dos elementos que habitam o cotidiano humano é, assim, romper o padrão dos que apenas mandam e-mails e digitam “@”; é um auto despertar para a vida investigativa e contemplativa – aquela de quem aprende a saciar a fome da curiosidade com ricas refeições de conhecimento.
*Por Thiago Jordão, professor de Filosofia no Colégio Presbiteriano Mackenzie (UPM).
